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Lia de Itamaracá e Daúde revitalizam sem nostalgia, em álbum conjunto, o axé e a herança ancestral das matriarcas

Lia de Itamaracá (à esquerda) e Daúde lançam o álbum 'Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia' Ravaneli Mesquita / Divulgação ♫ OPINIÃO S...

Lia de Itamaracá e Daúde revitalizam sem nostalgia, em álbum conjunto, o axé e a herança ancestral das matriarcas
Lia de Itamaracá e Daúde revitalizam sem nostalgia, em álbum conjunto, o axé e a herança ancestral das matriarcas (Foto: Reprodução)

Lia de Itamaracá (à esquerda) e Daúde lançam o álbum 'Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia' Ravaneli Mesquita / Divulgação ♫ OPINIÃO SOBRE ÁLBUM Título: Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia Artistas: Lia de Itamaracá e Daúde Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2 ♬ É emblemático que o álbum que junta Lia de Itamaracá e Daúde seja aberto com pujante abordagem de As negras (2019), joia de Chico César, escondida no baú de um disco menos coeso do artista e ora lapidada pelas cantoras em gravação feita com vocais de Assucena e Juliana Linhares. Irmanadas pelo axé vital trazido da África, herança das matriarcas da arca sagrada imaterial, como poetiza Chico nos versos iniciais de As negras, essas duas Marias brasileiras costuram referências pessoais e coletivas nas dez faixas do álbum produzido por Marcus Preto e Pupillo Oliveira. Aos 81 anos, Lia é Maria Madalena Correia do Nascimento, pernambucana de 1944 que move as águas da Ilha de Itamaracá, mar de cirandas e dos cocos que brotam em toda a nação nordestina. Aos 64 anos, Daúde é Maria Waldelurdes Costa de Santana Dutilleux, baiana de 1961 criada desde a adolescência no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde debutou há 30 anos no mercado fonográfico com álbum cosmopolita que a tornou uma das sensações da música brasileira em 1995. Separadas por 20 anos e por latitudes diferentes, mas também unidas pelas heranças comuns, as artistas convergem trajetórias no álbum Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia, lançado ontem, 27 de novembro, pelo Selo Sesc, em edição digital e no formato físico de CD, com capa que expõe pintura de Manuela Cavas. Músicas inéditas de Céu, Emicida, Karina Buhr, Otto e Russo Passapusso conferem atualidade ao álbum, desdobramento do show apresentado pelas artistas desde 2023. Emicida mandou Santo Antônio da Boa Fortuna, canção em feitio de oração que realça a carga de ancestralidade e espiritualidade já presente no encontro dessas Marias que misturam dor e alegria no repertório do disco. Parceria de Céu com Russo Passapusso, Florestania integra o cardápio de novidades como outra oração (menos envolvente), esta pela Terra e pelos povos da floresta. Turbinado com toque de dub, o pot-pourri com os cocos Bar do Hermínio (Dona Celia do Coco), Galo cantou (Selma do Coco) e Xô, xô, meu Sabiá (tema de domínio público) põe Lia e Daúde em território dominado pela cirandeira de voz rústica. Na sequência, Daúde brilha com o canto límpido de A galeria do amor (1975), abordagem de sucesso autoral que conquistou o Brasil há 50 anos na voz do cantor e compositor Agnaldo Timóteo (1936 – 2021). Sem a intensidade de Timóteo, mas com mais beleza no canto, Daúde oferece interpretação quase contemplativa dessa música em que o cantor enaltecia de forma velada a Galeria Alaska, então um efervescente ponto de encontros entre homens gays no Rio de Janeiro (RJ). Com o toque minimalista do piano Rhodes de Zé Ruivo, o arranjo econômico se afina com o tom do canto da artista na faixa. O solo de Daúde dialoga com o solo de Lia de Itamaracá, intérprete de Quem é (1961), bolero composto pelo cantor Silvinho (1931 – 2019) em parceria com Maurílio Lopes, lançado pelo próprio Silvinho e regravado por Agnaldo Timóteo. O arranjo de Quem é evoca a atmosfera do brega pernambucano, terra da sofrência. Ainda na seara do bolero, Lia e Daúde dão vozes à inédita música-título Pelos olhos do mar, composta por Otto a partir de base do produtor Pupillo Oliveira. Grande surpresa do repertório, Eu vou pegar o Metrô (1979) – música que encerrou o primeiro álbum de Cátia de França, parceira de Lourival Lemes no tema – mostra Daúde seguindo a rota carioca do progresso de forma arretada, com o dengo nordestino de Lia no refrão. Os vocais de Assucena e Juliana Linhares também energizam a faixa. Composição inédita fornecida por Karina Buhr (baiana criada em Pernambuco) para as cantoras, Bordado começa em tempo de delicadeza e segue em corrente de beleza melódica e poética nas vozes de Daúde e Lia com cordas arranjadas por Antonio Neves. E todos os caminhos do álbum Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia dão no mar da ciranda Se meu amor não chegar nesse São João, composição de Mestre Barracho, gravada pelas cantoras com as vozes adicionais de Isaar e das Irmãs Baracho, filhas do compositor. Enfim, entre boleros, cocos e cirandas deste disco gravado com músicos como o trompetista Antonio Neves e o guitarrista Pedro Baby, Daúde e Lia de Itamaracá revitalizam com axé as heranças das matriarcas negras da África e do Brasil, mas sem ranços de nostalgia, o que torna Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia um álbum dos dias de hoje. Capa do álbum ‘Pelos olhos do mar – Lia & Daúde ✧ Daúde & Lia’, de Lia de Itamaracá e Daúde Pintura de Manuela Cavas com arte gráfica de Alexandre Calderero